Como militante estudantil, lá pelos idos dos
anos 70, eu já ouvia falar de Dalmo de Abreu Dallari, renomado jurista, defensor
das mais nobres causas humanitárias, democráticas, republicanas, e, na minha
concepção à época, também socialistas. Entre nós era um ícone da esquerda
brasileira, da geração do recém falecido Plínio de Arruda Sampaio. Mas o mundo nos
apresenta surpresas e a história inusitados caprichos.
Eu o conheci pessoalmente em uma
oportunidade que nos colocaria como parceiros em um grande evento
político/cultural, em meados de 1989, quando da realização do Encontro
Latino-Americano de Educação Popular, em Passo Fundo, importante pólo regional cravado
no Planalto gaúcho. Ele, convidado para palestrar sobre questões relacionadas a
direito no campo da educação popular, na esteira de Paulo Freire, pauta obrigatória
para todo aquele que se apresentava ‘de esquerda’ à época, e eu convidado para
palestrar sobre minha experiência na Primeira Brigada Internacionalista
Brasileira para a Colheita de Café na Nicarágua, da qual havia participado em
1986. No evento em Passo Fundo eu deveria focar-me nas questões que eu havia
vivenciado no campo da educação popular levada a cabo pelos sandinistas. Na
época do evento eu já exercia o cargo de vereador em Porto Alegre, recém eleito
que fui sob as bandeiras ecológicas, e a oportunidade mostrou-se ótima para que
eu fizesse a ponte entre questões ecológicas, internacionalismo proletário e
questões ligadas à produção, tema caro aos sandinistas que viviam sob o cerco econômico
e militar dos americanos. A escassez de quase tudo suscitava enorme
criatividade no povo nicaragüense e despertava um palpável senso de ‘valor de
uso ecológico’ das coisas, o que eu sempre entendi como muito bom na linha do
anti-consumismo, princípio caro para todos os ecossocialistas.
Um
fato inusitado, porém, me traz sempre a viva lembrança da companhia de Dalmo
Dallari, então entre nós simplesmente ‘o Dallari’. A viagem entre Porto Alegre
e Passo Fundo foi bancada pela organização do evento e contou com a cessão de ‘uma
Brasília com motorista’ por parte da Prefeitura da cidade. Para nosso total
desespero, o tal motorista, funcionário da Prefeitura, fazia pela primeira vez
na vida uma viagem para fora de Passo Fundo, numa BR movimentada e ainda por
cima, entrando noite adentro ao final da viagem. Em determinado trecho sinuoso
na serra gaúcha, altamente perigoso, quase trombamos de frente com um enorme
caminhão surgido em meio a denso nevoeiro, coisa de filme de terror, momento em
que, tanto eu quanto o Dallari quase sofremos um enfarte dentro da ‘nobre
Brasília’. E o motorista quase desmaiou. Depois de nos recompormos
emocionalmente à beira da estrada, ‘por precaução’ seguimos viagem ao ritmo de
50km/h, proibido que estava de entregar o volante a outra pessoa. Momentos
assim a gente jamais esquece e ainda hoje me lembro de parte dos diálogos que
tivemos após o episódio e ao longo daquela viagem.
Porém, assim como o Plínio que nos deixou o
‘Plininho’, o Dallari nos deixou o Pedro, renomado advogado e atualmente
Presidente da Comissão Nacional da Verdade. Na época, vereador de São Paulo,
eleito na mesma eleição na qual também me elegi. Ainda em janeiro de 1989, logo
no início dos nossos mandatos, ele me recebeu carinhosamente em São Paulo como
anfitrião para um ‘giro por dentro do governo Erundina’, a qual me recebeu em seu
gabinete com todas as honras, beijicos e paparicos. Esperanças, delírios,
inesquecíveis lembranças... De uma época em que o PT prometia transformar a
sociedade brasileira, mudar a forma de fazer política, reformar o Estado,
acabar com a miséria, taxar as fortunas e... Para alívio da minha consciência
deixei o PT em 1991 ‘de mala e cuia’, atitude da qual jamais me arrependi e da
qual muito me orgulho em face ao rumo que o partido tomou a partir de então.
Disso tudo, advém, pois, a razão do meu
enorme desapontamento com a posição externada por Dalmo Dallari em seu artigo
que leva o título ‘Juridicamente
Adequado’, publicado no caderno Aliás, do jornal O Estado de São Paulo, na
edição do domingo 26.07.14. Tamanho foi meu choque e desapontamento, que fui
conferir se o autor era realmente o personagem com o qual havia vivenciado e ‘epopéia
de Passo Fundo’. Em seu artigo, que reproduzo abaixo, Dallari não somente
refuta os argumentos de inúmeras manifestações de protesto contra a série de prisões
arbitrárias e ilegais efetuadas pela repressão no Rio de Janeiro e em São Paulo,
como também, isto é o pior, as defende como ‘adequadas’, sob o argumento de ‘contribuir para dar segurança à comunidade e para a garantia do
exercício dos direitos fundamentais da cidadania’, o que me parece uma evidente
contradição. Perdeu, estou convencido, totalmente o rumo. Então vejamos.
Num ‘estado democrático de direito’, a liberdade de expressão é
garantida pela Constituição e se eu, por exemplo, confesso ser um socialista,
trata-se de um direito inalienável que tenho, assim como praticar qualquer
credo religioso ou idiossincrasia pessoal, desde que não promova morte, racismo
ou outros tipos de discriminações a terceiros, o que não se enquadra em nenhum
dos casos das pessoas que foram presas. Ora, a polícia prendeu as pessoas antes
de praticar atos, inferindo que elas certamente os praticariam. Assim,
inaugurou-se ‘a era dos ‘videntes’ na repressão político/policial, uma novidade
só imaginável nos dias atuais no Brasil, onde o ‘jeitinho’ avançou sobre a
esfera jurídica, da segurança pública e impregna, de resto, todo aparato do
Estado.
Inverte-se a lógica do crime: a ele é
imputada uma pena antes mesmo de ser cometido, lógica única no mundo, de
singular criatividade, mas que de ingênua nada tem. Trata-se de um
recurso/discurso jurídico ‘conceitualmente calibrado’ para avançar sobre
direitos civis conquistados duramente depois da ditadura cívico/militar e que,
pouco a pouco, e de mansinho, corrói essas conquistas. Este processo em curso eu
avalio em um texto que intitulei ‘Pouco a pouco, e de mansinho, a ditadura se
insinua’. O ‘recado’ é bem simples: intimidar as pessoas para que não façam
protestos de rua. E isso se dá em um momento em que milhares saem às ruas
exigindo casa própria, terra para arar, mobilidade decente, dentre outras
coisas. Acuada fica a elite nacional. E internacional. Em ‘patropi’ quem conduz
magistralmente a orquestra das elites acuadas é o PT.
Para mim, é profunda a tristeza em verificar
que, ao contrário do companheiro Plínio de Arruda Sampaio, sempre coerente e
fiel aos princípios socialistas e libertários até a sua morte na velhice (à sua
moda e estilo, é claro), Dalmo de Abreu Dallari comete um ‘crime de
lesa-justiça’ e absoluta incoerência política, que colide com sua história de
luta em defesa da cidadania e dos direitos humanos. Se me convidassem hoje para
viajar com ele novamente para Passo Fundo, não aceitaria de jeito algum. Como
disse lá no início, a história tem seus caprichos e nos reserva cada surpresa...
Tristezas e decepções também.
Gert Schinke, em Floripa-Gotham-City, agosto de 2014
Juridicamente
adequado
DALMO DE ABREU DALLARI - O ESTADO DE S. PAULO, 26 de Julho de 2014
Violência nas manifestações
justifica a decretação de prisões preventivas que garantam o próprio exercício
da cidadania
Direito de defesa. Na quinta,
um habeas corpus liberou a ativista Sininho
Prisões preventivas de ativistas decretadas por um juiz de uma vara
criminal do Rio de Janeiro despertaram reações indignadas, com acusações ao
magistrado de agir arbitrariamente, ofendendo o direito de livre manifestação
que é assegurado na Constituição. Entre as reações houve a publicação de um
manifesto assinado por vários deputados, afirmando que “foram prisões
cautelares destinadas a reprimir delitos imaginários forjados pelos aparatos da
repressão governamental”. E ressaltam que essa decisão do magistrado agrediu o
Estado democrático de direito, ofendendo o direito à liberdade individual. Em
outro documento de protesto foi dito que “a prisão dos ativistas foi uma grave
violação dos direitos e liberdades democráticas”, concluindo que “os direitos
de reunião e livre manifestação são conquistas legítimas do povo brasileiro”,
motivo pelo qual a prisão dos ativistas deve ser repelida por todos os que
defendem a democracia e a liberdade de manifestação.
Na justificativa de sua decisão, o magistrado em questão afirmou haver
sérios indícios de estar sendo planejada a realização de atos de extrema
violência para os próximos dias, a fim de aproveitar a visibilidade criada em
decorrência da cobertura dos eventos da Copa do Mundo de futebol, “sendo
necessária a atuação policial para impedir a consumação desse objetivo e também
para identificar os demais integrantes da associação”. A Ordem dos Advogados do
Brasil, seção do Rio de Janeiro, também se manifestou contra a decisão judicial
determinando a prisão preventiva dos ativistas, dizendo que foi “fundada em
previsões” ou baseada em suposições, sem nenhum suporte fático.
E houve o recurso a uma tentativa de suscitar um escândalo
internacional, com a pretensão de uma ativista, que tinha prisão preventiva
decretada pelo juiz criminal, de obter asilo no Uruguai, indo ao consulado
desse país no Rio de Janeiro e alegando estar ameaçada de prisão na condição de
presa política. Como era mais do que óbvio, o asilo foi negado, por absoluta falta
de justificativa, ficando desmascarada a ousada e descabida tentativa.
Fundamentando a negativa, a autoridade uruguaia assinalou que o Brasil é um
Estado democrático, onde as instituições jurídicas funcionam plenamente e
qualquer pessoa que se considere prejudicada em seus direitos poderá pedir e
obter proteção judicial.
Quanto a esses fatos e à decretação de prisão preventiva pelo juiz
criminal do Rio de Janeiro, é oportuno lembrar que nos últimos tempos se
desencadeou no Brasil uma onda de ativismo, sob os mais diferentes pretextos. A
sucessão de manifestações que, pacíficas no início, descambaram para extremos
de violência, com a interrupção do tráfego em vias de grande circulação, a
danificação de bens públicos e privados e outras ações ofensivas a direitos
fundamentais da cidadania, tudo isso justifica e mesmo recomenda a adoção de
medidas preventivas em defesa dos direitos dos cidadãos e de toda a sociedade.
No caso do Rio de Janeiro, uma decisão de eminente integrante do
tribunal de Justiça daquele Estado, em processo de habeas corpus, acaba de
determinar a soltura de grande número dos presos, para que exerçam na plenitude
seu direito de defesa. Mas eles continuarão sendo réus no processo criminal e
na decisão de soltura foi estabelecida uma série de restrições, visando,
justamente, a assegurar o prosseguimento da apuração de responsabilidades e,
quando for o caso, à punição dos que tiverem praticado algum ato definido em
lei como crime. Esse é o caminho juridicamente adequado que atende aos direitos
da cidadania: a utilização da via judicial para apuração dos fatos e,
caracterizando-se a prática de crime, a identificação dos responsáveis, para
sua punição legal, assegurando-se aos acusados a plenitude do direito de
defesa.
Certamente, a certeza da possibilidade de responsabilização jurídica e
da conseqüente imposição de penalidades deverá influir para a contenção dos
excessos dos ativistas e contribuirá para dar segurança à comunidade e para a
garantia do exercício dos direitos fundamentais da cidadania. O Brasil é um
Estado democrático de direito e tem uma Constituição com plena vigência,
incluindo um Poder Judiciário independente para dar efetividade à proteção e
garantia dos direitos.
*Dalmo de Abreu Dallari é jurista e professor emérito da Faculdade de
Direito da USP
Exército brasileiro cria órgão para monitorar
manifestações
TÂNIA MONTEIRO - O ESTADO DE S. PAULO, 31 Julho 2014
Nova organização deverá captar informações de movimentos
sociais; segundo oficiais, não haverá infiltração de agentes militares
Qualquer tipo de movimento social, de black blocs a
trabalhadores sem-teto, poderá ser objeto de acompanhamento pelo Exército
BRASÍLIA -
Cada vez mais acionado para apoiar ações de segurança pública, o Exército criou
um órgão para captar informações e monitorar movimentos sociais com potencial
para prejudicar o deslocamento e atuação de tropas federais convocadas para
conter distúrbios e que atuam na vigilância de áreas pacificadas. A nova 4.ª
subchefia do Comando de Operações Terrestres (COTER) receberá dados de todos os
órgãos que integram o Sistema de Inteligência do País (Sisbin). Todo o
trabalho, de acordo com o Exército, é preventivo e permite que a Força chegue
ao local para atuar, munida de dados que permitam ter completo “levantamento de
consciência situacional”. Nos bastidores, oficiais dizem que não haverá
infiltração de agentes militares nos movimentos. Qualquer tipo de movimento
social, de black blocs a trabalhadores sem-teto, pode ser objeto de
acompanhamento pelo Exército, caso seja enquadrado entre os segmentos que podem
prejudicar a execução de uma missão de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).
Os métodos
de atuação de vários desses movimentos usam táticas similares a guerrilhas
urbanas e rurais e há suspeitas de que alguns deles tenham ligação com
organizações criminosas das grandes capitais. A subchefia do Comando de
Operações Terrestres será abastecida pelos diversos órgãos de inteligência,
como o Centro de Inteligência do Exército (CIE), a Agência Brasileira de Inteligência
(Abin), a Polícia Federal, além dos órgãos de informações dos Estados, entre
outros. Até o final do ano passado, este trabalho era realizado por um
órgão de assessoramento ligado diretamente ao Comandante do Exército. Com as
seguidas e crescentes convocações das Forças Armadas para atuar em áreas
urbanas em todo o País, o Exército resolveu criar este órgão que, além de
juntar e destacar as informações de inteligência de interesse da operação em
curso, reúne dados de guerra eletrônica, defesa cibernética, comunicação social
e operações psicológicas. Hoje, as Forças Armadas estão patrulhando o
Complexo da Maré, no Rio, a pedido do governo do Estado. Havia possibilidade de
os militares do Exército serem empregados também para conter distúrbios que poderiam
ocorrer durante a final da Copa, como estava sendo previsto, mas a operação foi
abortada graças ao trabalho de inteligência e prisão preventiva dos integrantes
dos movimentos.
Prevenção. Para as
Forças Armadas, segundo informações obtidas pelo Estado, não foi
surpresa o grande número de manifestações na Copa das Confederações, no ano
passado. O que os militares não tinham dimensão era do tamanho do movimento e o
quão violento seria. O Exército defende a necessidade de se prevenir com
informações sobre os movimentos para que não sejam pegos desprevenidos. Um dos
objetivos é evitar que, caso a Força seja acionada, possa atuar
proporcionalmente ao que encontrará, para evitar qualquer tipo de dano
colateral contra sua própria gente. Por exemplo, em caso de ação para garantir
a lei e a ordem, de um determinado tipo de movimento, o Exército precisa
conhecer o seu líder, para isolá-lo, e precisa conhecer o material que está
sendo usado com as táticas de atuação.