Foi só o ruído das ruas
chegar aos ouvidos da nossa elite governante, que esta reagiu assustada diante
da mobilização contra os aumentos nas tarifas de ônibus que grassava no país.
Inicialmente reagiu de forma dúbia, mas logo exercitou o que melhor sabe fazer:
arrefecer o clamor popular adotando discurso acolhedor à demanda para logo mais
adiante nada fazer a respeito. E assim fica tudo como dantes. Será que dessa
vez funcionará esse surrado estratagema político?
A mobilidade urbana no
contexto do Brasil moderno é um tema em torno do qual as elites se aferraram ao
que existe de mais atrasado em todos os sentidos. Enquanto na saúde o povo
conquistou duramente o SUS, a mobilidade urbana convive com o pior equipamento,
vias e serviço, tudo em meio ao regime de concessão que dá, caso talvez único
no mundo, garantia de exploração por décadas para um punhado de ‘empresários
amigos’ dos governantes da hora, fiéis doadores de ‘contribuições eleitorais’,
em ‘cadeia de corrupção e exploração’ que se fecha em círculo perfeito.
As recentes tentativas de
aumentos de passagens de ônibus, a par do barulho em rechaço a sofrer ainda
mais hiper-exploração, colocaram como nunca a proposta da TARIFA ZERO na ordem
do dia. Em resposta ao povo na rua, assistimos uma série de prefeitos de
governadores acenarem com a diminuição (e não aumento como desejavam fazer) das
atuais tarifas, oferecendo isenções fiscais de diversos tipos, fato que
comprova uma única coisa que ao longo de décadas procuram negar: o transporte
público pode ser oferecido gratuitamente por via de recursos públicos sim,
desde que haja vontade política para tanto, pois recursos há de sobra. De
sobra, pois são investidos em outros lugares que não mobilidade urbana, quesito
que deixa o Brasil bem longe do seu lugar no panteão global do PIB. A ver pelos
estádios de futebol e obras complementares para a Copa 2014 que receberão
dezenas de bilhões de todos os governos ‘unidos pelo futebol profissional’ –
municipais, estaduais e federal, há riqueza material como nunca houve na
história ‘desse país’.
Porém, não considerando o
balanço ‘gastos na Copa X gastos com transporte público’, baixo uma situação
‘normal’ os orçamentos públicos podem sustentar perfeitamente os gastos para
manter a ‘tarifa zero’, bastando para tanto inverter prioridades orçamentárias,
deixar de lado gastanças em coisas que não interessam à melhoria da qualidade
de vida para a grande maioria da população trabalhadora. Afinal, vivemos em um
país rico, sexta economia do planeta, no qual se gasta em coisas inimagináveis
em ‘modo perpétuo móbile’ de desperdício de dinheiro público.
E isso não é dito por
motivos óbvios: os atuais governantes foram eleitos em torno de outras
propostas que não essa, com a qual não tem qualquer compromisso, simples assim,
embora ela esteja presente há décadas e inclusive já foi testada no início dos
anos 90 em São Paulo. De outra parte, os movimentos populares não conseguiram
pressionar por avanços e conquistar melhorias substanciais nesse sentido nas
décadas recentes, pois do contrário, teríamos muito mais que apenas três
municípios, num país de 5.500, oferecendo ônibus e trens urbanos sem cobrança
de tarifa e transporte público melhor na maioria de nossas cidades.
Não é preciso salientar a
significância social e humana da ‘tarifa zero’ enquanto melhoria no direito de
ir e vir, enquanto direito de apropriação da cidade, enquanto economia no
precário orçamento dos trabalhadores. Tudo isso é sobejamente sabido, pois a
‘tarifa zero’ equivale ao SUS na área de saúde: ela é o ‘SUS da mobilidade
urbana’ – recurso à disposição de todos e usa quem quer. E, assim como tem o
leito privado no hospital de luxo a disposição do rico, haverá o taxi de luxo
para o rico que não quer se misturar com o ‘reles povinho’ que anda de ônibus.
Mas também o rico, quando quiser, nada pagará no coletivo urbano, assim como no
SUS.
Tão importante quanto os
quesitos acima, a implantação da ‘tarifa zero’ estimulará a demanda por
transporte público coletivo numa sociedade dominada pelo ‘deus automóvel’,
invertendo prioridades no espaço urbano, muitas vezes exíguo e saturado com
equipamentos colocados a seu serviço, basta ver os imensos espaços de
estacionamentos em nossas cidades. Além do possível resgate desses imensos
espaços urbanos, que podem ser destinados a outras finalidades ‘mais nobres’ do
ponto de vista da qualidade de vida e formação humana, eliminar automóveis nas
ruas significa, acima de tudo, caminhar na despoluição da pestilenta atmosfera
em nossas grandes cidades, fator que, por sua vez, consome imensos recursos na
área de saúde pública. E desse modo, pode se abrir pouco a pouco os círculos
viciosos que realimentam o atual estado de coisas e produzem o pestilento
ambiente urbano. A quem interessa manter o sistema funcionando do jeito que
está hoje?
Na sociedade do consumo
capitalista, na qual o dinheiro comanda todos os valores, as implicações de
ordem ecológica são, via de regra, as menos lembradas, embora bem presentes e
produzindo efeitos inquestionáveis, para o bem ou para o mal. O balanço
energético, por exemplo, dentre outros quesitos, também mudará sob um regime de
‘tarifa zero’, pois milhares de automóveis deixarão hipoteticamente de rodar,
deixando de consumir petróleo ou outros combustíveis, e isso interessa a toda a
população que paga gordos subsídios à produção de energia, ainda que isso não
seja do interesse dos produtores e de seus associados políticos e econômicos.
Mas, se olharmos sob outro
ângulo, ainda haverá uma possível mudança cultural como ‘efeito colateral’ na
adoção da ‘tarifa zero’: o sentimento de coletividade, de pertencimento a uma
sociedade, coisa tão fora de moda nos dias em que o mundo parece girar em torno
do umbigo sob a égide do mais rastaqüera individualismo, obviamente associado
ao domínio do ‘deus automóvel’. A atitude de deixar de pensar no carro para se
locomover na cidade é resultado de uma pequena revolução mental, de valores de
vida e atitude, e que induzem a alterações de comportamento, possivelmente como
cuidar mais dos espaços públicos, das questões que afetam a todos no âmbito de
uma comunidade. E, por mais incrível que pareça isso pode levar a uma maior
politização, a um aumento no senso crítico no seio da população. A pergunta que
decorre de um ‘noves fora’: isso tudo é desejável a elite que governa o país? É
evidente que não, daí porque a constante tentativa de arrefecer a pressão
popular, de adotar discursos ambivalentes, de procrastinar ao máximo a adoção
de medidas que venham ao encontro de um novo rumo e que ensejem a quebra dos
vínculos econômicos e políticos que as sustentam no poder. Como sempre, sua
estratégia é fazer com que as mobilizações ‘morram na praia’. Diante do cenário
e da dura leitura histórica de patropi, dessa vez é necessário arrancar mais
que apenas ‘diminuição de tarifa’.
CHEGOU A VEZ DA TARIFA ZERO
!!
Florianópolis, junho de 2013
Gert Schinke
Historiador e ecologista,
autor do livro ‘ECOPLAMENTO – a teoria que explica o processo de
assimilação do colapso ecológico por parte do sistema capitalista global’
(Insular, 2013)
COMPLEMENTO OPORTUNO: nota
do prefeito municipal veiculada na tarde de 18.06.13, primeira manifestação de
rua na cidade sobre tarifa em 2013.
“Muito se critica a “apatia”
da juventude pós cara-pintada. De 1992 pra cá virou chavão dizer que diferente
dos jovens das décadas 70 e 80, combativas e idealistas, as gerações seguintes
caracterizavam-se pelo consumismo e individualismo. E pior com a
internet, diziam, utilizada até então para frivolidades e mais consumo.
Pois eis que surge este
movimento inesperado. Começa com uma questão de tarifa de ônibus, e
transforma-se numa enorme ação de combate a corrupção, aos gastos excessivos da
copa, de celebração da mobilização coletiva. Resgatou-se a rua como
ambiente de luta. Os jovens deixam bem claro que estão prontos a tomar nas rédeas
o futuro do país, e mais, sua revolta com o atual estado das coisas.
No início, diziam que algum
grupo político devia estar por trás de tudo, subestimando, mais uma vez, a
juventude do país. Agora caiu a ficha, trata-se algo de fato, espontâneo,
nacional, forte, articulado entre indivíduos mais que entre grupos.
Em algo tão grande, excessos
existem, alguns chocantes e lamentáveis. Covardes por vezes utilizam-se de
grandes aglomerações para praticar atos de vandalismo e agressões. Mas a
imensa maioria foi pacífica, unida e decidida.
Na tarde e noite desta
terça-feira Florianópolis entra no roteiro das manifestações. Que tenhamos um
forte ato de cidadania, de democracia, de participação popular jovem em favor
de causas comuns e mudanças. Que não permitamos aos vândalos o protagonismo de
algo tão belo como a mobilização popular. Que não permitamos a nenhum grupelho
político a apropriação de uma conquista única nos últimos anos: pensamento e
ação em favor de causas.
Esse é um momento em que
todo jovem sente a eletricidade do instante, a vontade de participar. Fazer
parte de algo maior que sí mesmo, agir. Isso é salvar a reputação de uma
geração. Boa manifestação, serenidade e paz.
Cesar Souza Júnior, prefeito
de Florianópolis”