- ou de como ‘elles’ fogem da TARIFA ZERO
Quem topa aumentar a carga tributária que consome
quase 40% do PIB propondo a criação de um novo imposto, seja para que
finalidade for? Tornar impostos mais justos socialmente, todavia, pode ser
aceitável sim, certamente a grande maioria da população apoiaria, porém, mais
impostos que gravarão indistintamente o bolso de todos, dificilmente será
aceito. Por aí inicio a análise sobre o financiamento da tarifa zero atendo-me
à coluna da arrecadação, da receita do cofre público composto por uma ‘cesta’
de impostos, taxas, repasses constitucionais, multas e receitas diversas. Uma
proposta alinhada com maior ‘justiça fiscal’ poderia propor, por exemplo,
aumento progressivo de IPTU voltados para grandes empreendimentos imobiliários,
para certos setores historicamente beneficiado por boutades fiscais, tais como
os bancos, clubes de recreio, entidades religiosas, dentre outros. Também
poderia propor, por exemplo, taxação dos proprietários de automóveis sobre o
atual IPVA para custear pelo menos parte dos investimentos na mobilidade
urbana. Mas esta última, além de injusta também se igual para todos os
proprietários, soaria um tanto irracional em face ao abandono da CIDE que o
governo federal patrocinou desde 2008, medida que retirou mais de R$ 22 bilhões
em investimentos que poderiam ser feitos pelo governo federal em mobilidade
urbana até a presente data, tudo custeado por quem compra combustível.
Por aí se constata, a exemplo também da diminuição
da alíquota do IPI para os automóveis, que foi uma sucessão de políticas
públicas fiscais equivocadas que acelerou nos últimos anos a deterioração do
quadro nos investimentos em mobilidade urbana no país. Bastaria restituir, ou
mesmo aumentar o IPI, sobre os automóveis particulares e gravar os combustíveis
novamente com a CIDE para repor parte daquilo que o ‘cofrão federal’ deixou de
arrecadar e, por tabela, fazer com que algumas dezenas de milhares de pessoas
se sintam estimuladas a usar o transporte público. Aí decorre o primeiro nó:
como abandonar o automóvel particular para entrar em carroças apertadas,
desorganizadas e também presas nos congestionamentos, verdadeira tortura pela
qual passa a maioria da população? Soa estranho, mas a minoração dos problemas
nesse setor exigirá muito tempo, pautada até o presente por sucessões de
equívocos, além de uma combinação de medidas que, ao se complementarem,
invertam gradualmente a situação caótica atual em nossas cidades. Dito isso,
não adianta apenas mexer nos impostos ou taxas, não adianta apenas mexer em
gastos em infra-estrutura viária, pouco resolve ‘tirar um pouco daqui para
colocar ali’ em se tratando de investimentos públicos nesse setor. O quadro
exige nada mais nada menos que ‘medidas de choque radicais’ em meio à era do
‘colapso ecológico planetário’ em que vivemos e que tem nas grandes metrópoles
mundiais um dos fatores mais agravantes nesse cenário.
Pelo ângulo da ‘cesta de impostos’, você notou que,
tal como um passe de mágica, os prefeitos de dezenas de municípios reduziram do
dia para noite (sob a pressão das manifestações, é claro) as tarifas de ônibus?
Essa ‘mágica orçamentária’ se deu apenas em função de um recálculo (eivado de
circunspecta honestidade) que promoveu algumas isenções fiscais no transporte
público, porém em nada mexeu com a taxa de lucratividade dos empresários. Você
ouviu algum deles reclamar? Dinheiro público deixou de ser arrecadado para
desonerar o custo, simples assim. A seguir esse raciocínio, quando mais em
desonerações teriam que ser adotadas para zerar o custo do transporte público?
A isenção do PIS/COFINS, por exemplo, retirou apenas entre R$ 0,10 a R$ 0,15
das tarifas, dependendo do valor que tinha. E a parte na qual a desoneração de
impostos não incide, como o salário dos trabalhadores, como ficaria? É óbvio
que a isenção de impostos sobre a planilha de custos praticamente bateu no
teto, pouco mais há o que tirar para baixar as tarifas já rebaixadas. E dessa
forma, apenas tratando de isenções fiscais, não chegaríamos à tão almejada
tarifa zero jamais se mantendo o quadro atual do regime tributário no país.
Alterar isso, porém, está num horizonte muito mais distante.
Por outro lado, a criação de um ‘fundo público’
específico para financiar a gratuidade das tarifas urbanas poderia se valer
dessas parcelas oriundas da reposição das atuais isenções fiscais, mas
isoladas, não suportariam nem de longe o volume de recursos exigidos para
bancar a tarifa zero. Por sua vez, promover desonerações em nada altera a
lógica sobre a qual se sustenta o sistema atual, modelo baseado em concessões
para ‘exploração dos serviços’ de longo prazo, sob domínio da iniciativa
privada e em regime de impenetrável ‘caixa-preta’. Sem mexer nesse modelo seria
o que chamamos de ‘pizza’, e para além dela, ainda traria um eficiente
‘marketing político’ para os atuais governantes ao concederem um ‘pirulito’
para o povo enraivecido sair das ruas e ir para casa comportado – sonho hoje acalentado
pelas elites acuadas com o ruído popular nas ruas. Seria ótimo, e por todos
motivos muito mais conveniente, se a implantação da tarifa zero trouxesse
consigo uma profunda alteração no atual modelo de gestão colocando-o
efetivamente sob controle do poder público, mas, ainda assim, a medida não
exigiria estatização das empresas concessionárias, visto experiência feita em
São Paulo nos anos 90, no governo de Luisa Erundina, sistema que operava com
empresas privadas e que se mostrou viável e eficiente. Muito mais importante se
o serviço é prestado por empresa privada ou estatal, é eliminar o atual sistema
de concessão no qual predominam contratos obscuros, na grande maioria sequer
frutos de licitações. A contratação por períodos menores é muito mais adequada
e coerente nos dias atuais, combinada com a prerrogativa de regulação e
fiscalização por parte do poder público, condição irremovível seja qual for o
regime adotado na contratação. A adoção da ‘tarifa zero’, portanto, não exige
como pré-condição a estatização do setor, embora ela seja preferível sob vários
aspectos. O SUS, por exemplo, contrata uma gama enorme de serviços privados,
sem os quais ele não suportaria o atendimento. A PEC 90, de iniciativa da
Deputada Erundina, que coloca o ‘direito ao transporte público’ como direito
social em nossa Constituição é um primeiro passo para arranjar institucional e
juridicamente a questão, o que em 1988 não foi possível conquistar. Isso feito,
o ‘direito à mobilidade’ se equivaleria ao direito à saúde, à educação e outros
tantos direitos inscritos na Carta. Daí porque se fala que a ‘tarifa zero’
equivaleria ao ‘SUS no transporte’, bancado pelo poder público e à disposição
de todos, de alcance universal no melhor dos mundos, em tese. Essa medida está
agora ao alcance imediato do Congresso, basta ser colocada em votação. Ela,
porém, também não é uma pré-condição (jurídica nesse caso) para a implantação
da tarifa zero, pois três municípios brasileiros já a adotaram sem que houvesse
PEC aprovada. Simplesmente os prefeitos a adotaram por vontade política de
inverter prioridades nos gastos públicos nesses três pioneiros municípios
brasileiros, remanejando despesas, talvez até mesmo remanejando alguma receita,
para bancá-la.
Aí adentro para a análise sobre a outra coluna do
orçamento público, o da despesa, do investimento, sobre a qual se desenrola o
medonho ‘cabo de forças da luta de classes’ na disputa pelo abocanhamento dos
recursos públicos. Estes, como se sabe, são destinados aos grupos mais
organizados das elites e com maior grau de cumplicidade política com os
governantes da hora, em qualquer das dimensões da esfera pública. O cabo de
forças, se de um lado agora conta com manifestantes nas ruas, do outro tem
lobistas e malas pretas circulando com ‘favores’ de toda ordem, neles incluindo
as já tão badaladas ‘contribuições eleitorais’, sejam mensais, anuais ou
bianuais, de acordo com o calendário eleitoral. Cabe lembrar que, salvo
honrosas exceções, a grande maioria dos atuais legisladores nas três esferas
legislativas não passa de ‘despachantes de empresas’, embora, agora sob o calor
dos protestos, procurem ‘agilizar’ os trabalhos.
O remanejo nos gastos públicos acaba por se
configurar no maior desafio à implantação da tarifa zero, porquanto sua adoção
implica em abrir mão de gastos atualmente efetivados em questões não
prioritárias para a grande maioria da população, tais como shows musicais em
profusão, propaganda institucional dos gestores públicos trazendo mentiras
deslavadas, gastos perdulários na máquina administrativa, gastos aviltantes em
equipamentos de repressão como os que se vê a política ostentar nas
manifestações e, dentre tantos outros, também no próprio setor de mobilidade
urbana, recheado de obras faraônicas e o onipresente recapeamento asfáltico
para deliro das empreiteiras ‘amigas’ que aportaram doações eleitorais, como
lembrei anteriormente. Há, em verdade, uma imensa riqueza no cofre público que
é canalizada para outras finalidades que não as prioridades definidas pela
população que, via de regra, ainda pouco consegue definir no atual estágio de
participação na gestão pública, sequer por via do tão propalado ‘orçamento
participativo’, em muitos casos coisa ‘pra inglês ver’ e cada vez mais ‘fora de
moda’ nos últimos anos, infelizmente. A ver pelo Ministério das Cidades, a
exemplo de como trata os planos diretores, ‘estamos no mato sem cachorro’ na
mobilidade urbana. De resto...
Além de não haver pré-condicionantes jurídicos,
como analisei anteriormente, a implantação da ‘tarifa zero’ também não exige pré-condições
que impliquem abandono de investimentos já voltados atualmente para áreas
prioritárias tais como saúde e educação, por exemplo, argumento que parte
normalmente dos governantes atuais para rejeitar a proposta, quando recorrem à
contraposição entre uma e outra área de investimento. Em verdade estes não
querem é justo mexer lá onde assumiram compromissos de investimentos com seus
grupos apoiadores, sejam financiadores de campanha, sejam parcelas da população
supostamente votantes em suas propostas de governo. Removamos, pois, os atuais
governantes.
O que mais chama atenção no atual cenário sob o
jugo da Lei (de exceção) da Copa, são os gastos públicos realizados em torno
desse evento global, já encostando em redondos R$ 30 bilhões, e que reproduz aqui
o que aconteceu nas últimas Copas, especialmente na África do Sul, país onde
soçobram estádios deteriorados e prejuízo bilionário a ser pago sabe-se lá
quando pelas futuras gerações de sul-africanos. É evidente que dinheiro nesse
riquíssimo Brasil não falta e o pior é que muito mais ainda será gasto para
cumprir os compromissos assumidos pelo governo brasileiro diante da FIFA – um
escárnio para com o povo que anda em ‘carroças’. Como se vê, o maior entrave é
meramente de natureza política, vontade dos governantes remanejarem os gastos e
destinar (mesmo que paulatinamente) recursos para bancar a tarifa zero. Muito
mais que na coluna da arrecadação (dos impostos), o nó se encontra justamente
na coluna da despesa, do investimento público, onde o padrão atual deverá mudar
substancialmente com vistas ao atendimento das prioridades exigidas pela
maioria da população, em detrimento de beatitudes aos amigos do poder. É na
coluna dos investimentos públicos que se pode confrontar com cristalina nitidez
o conflito de prioridade entre COPA e ‘tarifa zero’, simples assim.
Na sociedade do consumo capitalista, na qual o
dinheiro comanda todos os valores, as implicações de ordem ecológica são, via
de regra, as menos lembradas, embora bem presentes e produzindo efeitos inquestionáveis,
para o bem ou para o mal. O balanço energético, por exemplo, dentre outros
quesitos, mudará substancialmente sob um regime de ‘tarifa zero’, pois milhares
de automóveis deixarão hipoteticamente de rodar, deixando de consumir petróleo
ou outros combustíveis, e isso interessa a toda a população que paga gordos
subsídios à produção de energia, ainda que contrarie interesses dos produtores
de energia e de seus associados políticos e econômicos.
Por outro ângulo, também haverá um benéfico ‘efeito
colateral’ na adoção da ‘tarifa zero’: o sentimento de coletividade, de
pertencimento a uma sociedade, coisa tão fora de moda nos dias em que o mundo
parece girar em torno do umbigo sob a égide do mais rastaqüera individualismo,
obviamente associado ao domínio do ‘deus automóvel’. A atitude de deixar de
‘pensar no carro’ para se locomover na cidade é resultado de uma pequena
revolução mental/cultural, de valores de vida e atitude, e que induzem a
alterações de comportamento, possivelmente como cuidar mais dos espaços
públicos, das questões que afetam a todos no âmbito de uma comunidade. E, por
mais incrível que pareça isso pode levar a uma maior politização, a um aumento
no senso crítico no seio da população, imprescindível para operar mudanças.
A pergunta que decorre de um oportuno ‘noves fora’:
isso tudo é desejável a elite que governa o país? É evidente que não, daí
porque a constante tentativa de arrefecer a pressão popular, de adotar
discursos ambivalentes, de procrastinar ao máximo a adoção de medidas que
venham ao encontro de um novo rumo que enseje a quebra dos vínculos econômicos
e políticos que a sustenta no poder. Como sempre, sua estratégia é fazer com
que as mobilizações ‘morram na praia’ diante da oferta de um ‘pirulito’ –
baixar centavinhos nas tarifas. O cenário exige muito mais que mera ‘diminuição
de tarifa’, indica mudança nas prioridades dos investimentos públicos.
AGORA CHEGOU A VEZ DA TARIFA ZERO !!
Florianópolis, junho de 2013
Gert Schinke - Historiador e ecologista, autor
do livro ‘ECOPLAMENTO – a teoria que explica o processo de assimilação
do colapso ecológico por parte do sistema capitalista global’ (Ed.Insular,
2013). Coordenador Geral da FEEC – Federação das Entidades Ecologistas
Catarinenses, Membro titular do Núcleo Gestor Municipal do Plano Diretor
Participativo, colaborador do Movimento Passe Livre de Florianópolis