sábado, 29 de junho de 2013

ENTRE O PIRULITO E A PRIORIDADE

  
- ou de como ‘elles’ fogem da TARIFA ZERO
Quem topa aumentar a carga tributária que consome quase 40% do PIB propondo a criação de um novo imposto, seja para que finalidade for? Tornar impostos mais justos socialmente, todavia, pode ser aceitável sim, certamente a grande maioria da população apoiaria, porém, mais impostos que gravarão indistintamente o bolso de todos, dificilmente será aceito. Por aí inicio a análise sobre o financiamento da tarifa zero atendo-me à coluna da arrecadação, da receita do cofre público composto por uma ‘cesta’ de impostos, taxas, repasses constitucionais, multas e receitas diversas. Uma proposta alinhada com maior ‘justiça fiscal’ poderia propor, por exemplo, aumento progressivo de IPTU voltados para grandes empreendimentos imobiliários, para certos setores historicamente beneficiado por boutades fiscais, tais como os bancos, clubes de recreio, entidades religiosas, dentre outros. Também poderia propor, por exemplo, taxação dos proprietários de automóveis sobre o atual IPVA para custear pelo menos parte dos investimentos na mobilidade urbana. Mas esta última, além de injusta também se igual para todos os proprietários, soaria um tanto irracional em face ao abandono da CIDE que o governo federal patrocinou desde 2008, medida que retirou mais de R$ 22 bilhões em investimentos que poderiam ser feitos pelo governo federal em mobilidade urbana até a presente data, tudo custeado por quem compra combustível.
Por aí se constata, a exemplo também da diminuição da alíquota do IPI para os automóveis, que foi uma sucessão de políticas públicas fiscais equivocadas que acelerou nos últimos anos a deterioração do quadro nos investimentos em mobilidade urbana no país. Bastaria restituir, ou mesmo aumentar o IPI, sobre os automóveis particulares e gravar os combustíveis novamente com a CIDE para repor parte daquilo que o ‘cofrão federal’ deixou de arrecadar e, por tabela, fazer com que algumas dezenas de milhares de pessoas se sintam estimuladas a usar o transporte público. Aí decorre o primeiro nó: como abandonar o automóvel particular para entrar em carroças apertadas, desorganizadas e também presas nos congestionamentos, verdadeira tortura pela qual passa a maioria da população? Soa estranho, mas a minoração dos problemas nesse setor exigirá muito tempo, pautada até o presente por sucessões de equívocos, além de uma combinação de medidas que, ao se complementarem, invertam gradualmente a situação caótica atual em nossas cidades. Dito isso, não adianta apenas mexer nos impostos ou taxas, não adianta apenas mexer em gastos em infra-estrutura viária, pouco resolve ‘tirar um pouco daqui para colocar ali’ em se tratando de investimentos públicos nesse setor. O quadro exige nada mais nada menos que ‘medidas de choque radicais’ em meio à era do ‘colapso ecológico planetário’ em que vivemos e que tem nas grandes metrópoles mundiais um dos fatores mais agravantes nesse cenário.
Pelo ângulo da ‘cesta de impostos’, você notou que, tal como um passe de mágica, os prefeitos de dezenas de municípios reduziram do dia para noite (sob a pressão das manifestações, é claro) as tarifas de ônibus? Essa ‘mágica orçamentária’ se deu apenas em função de um recálculo (eivado de circunspecta honestidade) que promoveu algumas isenções fiscais no transporte público, porém em nada mexeu com a taxa de lucratividade dos empresários. Você ouviu algum deles reclamar? Dinheiro público deixou de ser arrecadado para desonerar o custo, simples assim. A seguir esse raciocínio, quando mais em desonerações teriam que ser adotadas para zerar o custo do transporte público? A isenção do PIS/COFINS, por exemplo, retirou apenas entre R$ 0,10 a R$ 0,15 das tarifas, dependendo do valor que tinha. E a parte na qual a desoneração de impostos não incide, como o salário dos trabalhadores, como ficaria? É óbvio que a isenção de impostos sobre a planilha de custos praticamente bateu no teto, pouco mais há o que tirar para baixar as tarifas já rebaixadas. E dessa forma, apenas tratando de isenções fiscais, não chegaríamos à tão almejada tarifa zero jamais se mantendo o quadro atual do regime tributário no país. Alterar isso, porém, está num horizonte muito mais distante.
Por outro lado, a criação de um ‘fundo público’ específico para financiar a gratuidade das tarifas urbanas poderia se valer dessas parcelas oriundas da reposição das atuais isenções fiscais, mas isoladas, não suportariam nem de longe o volume de recursos exigidos para bancar a tarifa zero. Por sua vez, promover desonerações em nada altera a lógica sobre a qual se sustenta o sistema atual, modelo baseado em concessões para ‘exploração dos serviços’ de longo prazo, sob domínio da iniciativa privada e em regime de impenetrável ‘caixa-preta’. Sem mexer nesse modelo seria o que chamamos de ‘pizza’, e para além dela, ainda traria um eficiente ‘marketing político’ para os atuais governantes ao concederem um ‘pirulito’ para o povo enraivecido sair das ruas e ir para casa comportado – sonho hoje acalentado pelas elites acuadas com o ruído popular nas ruas. Seria ótimo, e por todos motivos muito mais conveniente, se a implantação da tarifa zero trouxesse consigo uma profunda alteração no atual modelo de gestão colocando-o efetivamente sob controle do poder público, mas, ainda assim, a medida não exigiria estatização das empresas concessionárias, visto experiência feita em São Paulo nos anos 90, no governo de Luisa Erundina, sistema que operava com empresas privadas e que se mostrou viável e eficiente. Muito mais importante se o serviço é prestado por empresa privada ou estatal, é eliminar o atual sistema de concessão no qual predominam contratos obscuros, na grande maioria sequer frutos de licitações. A contratação por períodos menores é muito mais adequada e coerente nos dias atuais, combinada com a prerrogativa de regulação e fiscalização por parte do poder público, condição irremovível seja qual for o regime adotado na contratação. A adoção da ‘tarifa zero’, portanto, não exige como pré-condição a estatização do setor, embora ela seja preferível sob vários aspectos. O SUS, por exemplo, contrata uma gama enorme de serviços privados, sem os quais ele não suportaria o atendimento. A PEC 90, de iniciativa da Deputada Erundina, que coloca o ‘direito ao transporte público’ como direito social em nossa Constituição é um primeiro passo para arranjar institucional e juridicamente a questão, o que em 1988 não foi possível conquistar. Isso feito, o ‘direito à mobilidade’ se equivaleria ao direito à saúde, à educação e outros tantos direitos inscritos na Carta. Daí porque se fala que a ‘tarifa zero’ equivaleria ao ‘SUS no transporte’, bancado pelo poder público e à disposição de todos, de alcance universal no melhor dos mundos, em tese. Essa medida está agora ao alcance imediato do Congresso, basta ser colocada em votação. Ela, porém, também não é uma pré-condição (jurídica nesse caso) para a implantação da tarifa zero, pois três municípios brasileiros já a adotaram sem que houvesse PEC aprovada. Simplesmente os prefeitos a adotaram por vontade política de inverter prioridades nos gastos públicos nesses três pioneiros municípios brasileiros, remanejando despesas, talvez até mesmo remanejando alguma receita, para bancá-la.
Aí adentro para a análise sobre a outra coluna do orçamento público, o da despesa, do investimento, sobre a qual se desenrola o medonho ‘cabo de forças da luta de classes’ na disputa pelo abocanhamento dos recursos públicos. Estes, como se sabe, são destinados aos grupos mais organizados das elites e com maior grau de cumplicidade política com os governantes da hora, em qualquer das dimensões da esfera pública. O cabo de forças, se de um lado agora conta com manifestantes nas ruas, do outro tem lobistas e malas pretas circulando com ‘favores’ de toda ordem, neles incluindo as já tão badaladas ‘contribuições eleitorais’, sejam mensais, anuais ou bianuais, de acordo com o calendário eleitoral. Cabe lembrar que, salvo honrosas exceções, a grande maioria dos atuais legisladores nas três esferas legislativas não passa de ‘despachantes de empresas’, embora, agora sob o calor dos protestos, procurem ‘agilizar’ os trabalhos.
O remanejo nos gastos públicos acaba por se configurar no maior desafio à implantação da tarifa zero, porquanto sua adoção implica em abrir mão de gastos atualmente efetivados em questões não prioritárias para a grande maioria da população, tais como shows musicais em profusão, propaganda institucional dos gestores públicos trazendo mentiras deslavadas, gastos perdulários na máquina administrativa, gastos aviltantes em equipamentos de repressão como os que se vê a política ostentar nas manifestações e, dentre tantos outros, também no próprio setor de mobilidade urbana, recheado de obras faraônicas e o onipresente recapeamento asfáltico para deliro das empreiteiras ‘amigas’ que aportaram doações eleitorais, como lembrei anteriormente. Há, em verdade, uma imensa riqueza no cofre público que é canalizada para outras finalidades que não as prioridades definidas pela população que, via de regra, ainda pouco consegue definir no atual estágio de participação na gestão pública, sequer por via do tão propalado ‘orçamento participativo’, em muitos casos coisa ‘pra inglês ver’ e cada vez mais ‘fora de moda’ nos últimos anos, infelizmente. A ver pelo Ministério das Cidades, a exemplo de como trata os planos diretores, ‘estamos no mato sem cachorro’ na mobilidade urbana. De resto...
Além de não haver pré-condicionantes jurídicos, como analisei anteriormente, a implantação da ‘tarifa zero’ também não exige pré-condições que impliquem abandono de investimentos já voltados atualmente para áreas prioritárias tais como saúde e educação, por exemplo, argumento que parte normalmente dos governantes atuais para rejeitar a proposta, quando recorrem à contraposição entre uma e outra área de investimento. Em verdade estes não querem é justo mexer lá onde assumiram compromissos de investimentos com seus grupos apoiadores, sejam financiadores de campanha, sejam parcelas da população supostamente votantes em suas propostas de governo. Removamos, pois, os atuais governantes.
O que mais chama atenção no atual cenário sob o jugo da Lei (de exceção) da Copa, são os gastos públicos realizados em torno desse evento global, já encostando em redondos R$ 30 bilhões, e que reproduz aqui o que aconteceu nas últimas Copas, especialmente na África do Sul, país onde soçobram estádios deteriorados e prejuízo bilionário a ser pago sabe-se lá quando pelas futuras gerações de sul-africanos. É evidente que dinheiro nesse riquíssimo Brasil não falta e o pior é que muito mais ainda será gasto para cumprir os compromissos assumidos pelo governo brasileiro diante da FIFA – um escárnio para com o povo que anda em ‘carroças’. Como se vê, o maior entrave é meramente de natureza política, vontade dos governantes remanejarem os gastos e destinar (mesmo que paulatinamente) recursos para bancar a tarifa zero. Muito mais que na coluna da arrecadação (dos impostos), o nó se encontra justamente na coluna da despesa, do investimento público, onde o padrão atual deverá mudar substancialmente com vistas ao atendimento das prioridades exigidas pela maioria da população, em detrimento de beatitudes aos amigos do poder. É na coluna dos investimentos públicos que se pode confrontar com cristalina nitidez o conflito de prioridade entre COPA e ‘tarifa zero’, simples assim.
Na sociedade do consumo capitalista, na qual o dinheiro comanda todos os valores, as implicações de ordem ecológica são, via de regra, as menos lembradas, embora bem presentes e produzindo efeitos inquestionáveis, para o bem ou para o mal. O balanço energético, por exemplo, dentre outros quesitos, mudará substancialmente sob um regime de ‘tarifa zero’, pois milhares de automóveis deixarão hipoteticamente de rodar, deixando de consumir petróleo ou outros combustíveis, e isso interessa a toda a população que paga gordos subsídios à produção de energia, ainda que contrarie interesses dos produtores de energia e de seus associados políticos e econômicos.
Por outro ângulo, também haverá um benéfico ‘efeito colateral’ na adoção da ‘tarifa zero’: o sentimento de coletividade, de pertencimento a uma sociedade, coisa tão fora de moda nos dias em que o mundo parece girar em torno do umbigo sob a égide do mais rastaqüera individualismo, obviamente associado ao domínio do ‘deus automóvel’. A atitude de deixar de ‘pensar no carro’ para se locomover na cidade é resultado de uma pequena revolução mental/cultural, de valores de vida e atitude, e que induzem a alterações de comportamento, possivelmente como cuidar mais dos espaços públicos, das questões que afetam a todos no âmbito de uma comunidade. E, por mais incrível que pareça isso pode levar a uma maior politização, a um aumento no senso crítico no seio da população, imprescindível para operar mudanças.
A pergunta que decorre de um oportuno ‘noves fora’: isso tudo é desejável a elite que governa o país? É evidente que não, daí porque a constante tentativa de arrefecer a pressão popular, de adotar discursos ambivalentes, de procrastinar ao máximo a adoção de medidas que venham ao encontro de um novo rumo que enseje a quebra dos vínculos econômicos e políticos que a sustenta no poder. Como sempre, sua estratégia é fazer com que as mobilizações ‘morram na praia’ diante da oferta de um ‘pirulito’ – baixar centavinhos nas tarifas. O cenário exige muito mais que mera ‘diminuição de tarifa’, indica mudança nas prioridades dos investimentos públicos.
AGORA CHEGOU A VEZ DA TARIFA ZERO !!
Florianópolis, junho de 2013
Gert Schinke - Historiador e ecologista, autor do livro ‘ECOPLAMENTO – a teoria que explica o processo de assimilação do colapso ecológico por parte do sistema capitalista global’ (Ed.Insular, 2013). Coordenador Geral da FEEC – Federação das Entidades Ecologistas Catarinenses, Membro titular do Núcleo Gestor Municipal do Plano Diretor Participativo, colaborador do Movimento Passe Livre de Florianópolis


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