quinta-feira, 5 de maio de 2011

OSX - SURFANDO NA ONDA DO PRÉ-SAL


Ou “de como barganhar com bilhões no bolso”

OS ANTECEDENTES
Tudo começa há muito tempo atrás, quando o filho de um prócer da ditadura militar, Ministro de Estado, consegue informações e contatos privilegiados que o catapultariam para uma exitosa aventura empresarial, cujo sucesso já estaria assegurado de antemão, em curso de choque com o que apregoa a ideologia  liberal – mérito pelo trabalho duro, criatividade do indivíduo, espírito empreendedor. O personagem central dessa história, hoje o 8º homem mais rico do mundo, ficou só no último quesito, espírito empreendedor, além de muita ambição de enriquecer rapidamente. Sua trajetória está estampada nos sites das suas empresas, nos cadernos de economia de muitos jornais, nas revistas de fofocas mundo afora. Na elite brasileira, é comemorado como “orgulho nacional”, com direito a brindes e fotos ao lado de presidentes e a atual presidenta. Além de crédito “infinito” por parte do BNDES, banco de fomento que uso o meu, o seu, o nosso dinheiro.
Tudo andava muito bem no ramo da mineração, quando, de repente, se anunciou a descoberta do petróleo na camada do pré-sal no litoral paulista, notícia que fez estalar o fator “X” nos cálculos empresariais do grupo EBX. A especulação que a descoberta do pré-sal gerou no setor petrolífero foi imediata e implacável em despertar todos os demais setores empresariais envolvidos direta ou indiretamente com ele. Ato contínuo, as projeções sobre a produção de equipamentos de prospecção, transporte e refino do petróleo se iniciaram, porta que se abriu para a inserção da OSX, recém fundada, na disputa pelo butim da grande onda gerada pela descoberta do pré-sal. Algo como a “descoberta do ouro” no velho oeste. Agora, porém, “ouro preto” em alto mar.
O trágico nessa história, é que o pré-sal surge num momento delicado por que passa o mundo todo, e, particularmente no Brasil: com ele se aprofunda na matriz energética brasileira a fonte de hidrocarboneto, petróleo e gás, quando o país precisa repensar todo seu sistema energético para torná-lo mais ecológico, mais eficiente, menos dependente do petróleo. Na contramarcha da história, o que se vislumbra é o Brasil se transformar em poucos anos em grande exportador de petróleo, socorrendo as economias dependentes do mesmo e contribuindo assim para o aumento dos gases estufa, fator do aquecimento global, justo o que o mundo todo condena e quer minorar. Em vez de caminharmos na direção ecologicamente indicada, estamos rumando em direção contrária. É urgentíssimo e inadiável o incremento do uso de energias alternativas – solar, fotovoltaica e de biomassa ecologicamente produzidas. A exploração do pré-sal envolve riscos ecológicos altíssimos, além de custos econômicos e sociais que não compensam à sociedade como um todo. Com o pré-sal deformou-se ainda mais a valoração das prioridades por parte dos investimentos do Estado no atendimento das questões mais urgentes que a maioria da população precisa ver encaminhadas na busca de maior qualidade de vida, como saneamento básico, educação de qualidade, infra-estrutura de todo tipo.
Nesse cenário, a OSX, empresa voltada à produção e manutenção de equipamentos navais, com foco na indústria petrolífera, movimentou-se rapidamente na prospecção de um local que poderia receber um novo estaleiro para produzir especificamente equipamentos de prospecção petrolífera em alto mar, as tais plataformas adaptadas em cima de navios prontos para recebê-las. Não precisou fazer muito esforço, pois assim que noticiou a intenção de erigir um estaleiro, não faltaram prefeitos e governadores para acenar com os tais “incentivos fiscais”, maneira corrente pela qual se cria empregos no país.

O LOBBY LOCAL EM PROL DO ESTALEIRO
Biguaçu, município catarinense encravado numa baía de mar manso, com disponibilidade de terra na orla marítima, logo acenou com vantagens para a instalação do estaleiro, movimento que de imediato amealhou um sem número de apoiadores na região metropolitana, e que, a par de poucas semanas, configurou um verdadeiro movimento social e político em prol da instalação do estaleiro. Envolvendo ultra-rápida alteração de zoneamento urbano do seu Plano Diretor, senha para consolidar a opção locacional por Biguaçu, a Prefeitura viabilizou urbanisticamente a construção no imenso território comprado pela OSX, antes voltado para uso exclusivamente residencial e de lazer.
Isso tudo, em meio a um “ano eleitoral”, 2010, que radicalizou os discursos em prol de demandas das comunidades, que estereotipou as visões no curso do debate, que ofuscou as causas subjacentes aos interesses em jogo. O grupo EBX injetou milhões em campanhas eleitorais por via de contribuições aos partidos da base do governo federal, que irrigaram um sem número de candidatos proporcionais em SC, como se ficou sabendo posteriormente, comprovadas pelas prestações de contas do TER-SC. E o jogo se tornou bastante pesado, com as armas de sempre, identificaram-se os “ecochatos”, aparecem os colaboradores da hora, os lobbys se formaram com desenvoltura num piscar de olhos. Governos municipais, o estadual e o federal se uniram na oferta de uma “cesta de facilidades”, e promoveram rápida investida sobre o órgão de licenciamento para acelerar o processo de instalação do estaleiro, procurando tornar o empreendimento irreversível em Biguaçu, embora outras alternativas locacionais pareciam se mostrar mais vantajosas a OSX.
Na esteira da tradição política brasileira, o que se viu desenrolar aqui e em Brasília, foi o fenômeno da transmutação de várias autoridades públicas dos executivos e legislativos em verdadeiros “despachantes” da OSX, praticando aberto tráfico de influência, pressões de toda sorte sobre os órgãos licenciadores, especialmente diante do obstáculo criado pelo parecer contrário à instalação em Biguaçu exarado pela equipe de analistas do ICMbio local. Alguns parlamentares chegaram ao absurdo de propor a simples remoção de seus integrantes para produzir um novo parecer por parte do órgão, que, ao final das contas, foi feito meses depois em Brasília, por equipe especialmente constituída para tanto. Embora este último parecer propiciasse a instalação do estaleiro em Biguaçu, a empresa anunciou sua desistência da cidade antes mesmo de ele ter sido divulgado oficialmente. E só o foi, mediante intensa pressão da sociedade sobre a direção do ICMbio em Brasília.
O script desse roteiro já estava escrito tão logo a empresa acenou a intenção de construir o estaleiro. O tempo não só o comprovou, mas provou que diante do plano de negócio do grupo EBX, a locação em Biguaçu não seria tão atraente como o litoral carioca, no qual acabou ancorando seu estaleiro ao lado do porto de Açu, em São João da Barra. Muito mais fácil, muito mais lucrativo, muito mais gerenciável sob todos os pontos de vista. E melhor, opção que envolveria muito menos riscos ambientais e técnicos aqui em jogo: a incontornável proximidade das UCs no entorno da área escolhida em Biguaçu; agressões à fauna e flora costeira e marítima, além dos impactos paisagísticos, culturais e sociais em toda região metropolitana, largamente discutidos ao longo do processo e retratados nos demais textos que este acompanham.
Como já dizíamos na época do embate contra a instalação do estaleiro em Biguaçu, só haveria um ganhador nessa macabra equação política e econômica: o grupo EBX. Na escolha que fez pelo litoral carioca, deu uma soberba rasteira em seus aliados catarinenses, que, literalmente, ficaram a ver navios (ou plataformas de petróleo tomar outro destino). Para Biguaçu e SC ficou a discreta visita do “senhor dos anéiX” e uma vaga promessa de efetivar um outro empreendimento naquelas plagas, agora voltado ao setor imobiliário.

UMA INDÚSTRIA METAL-MECÂNICA “PESADA”
Depois que Florianópolis viu seu porto marítimo ser engolido por um aterro, seguido pela construção das duas novas pontes, a cidade mudou sua relação com o mar, teve sua paisagem drasticamente modificada e, a partir dos anos 70, vivenciou uma explosão urbana sem precedentes que alcançou todos os quadrantes da ilha e continente. Passada uma geração, já não se fala mais em fainas marítimas e lides e reparos navais praticados no Estaleiro Arataca, da Empresa Hoepcke. A partir de então, já passadas duas gerações, toda essa rica cultura náutica ficaria restrita aos núcleos de pescadores artesanais que sobreviveram ao longo do tempo, hoje resumidos a alguns bolsões de poucas centenas de famílias. Em síntese, a cultura marítima refluiu na escala de valores sociais, ao mesmo tempo que cresciam os setores de turismo receptivo, construção civil, comércio e serviços em ritmo exponencial.
Um estaleiro naval de porte é uma indústria pesada do ramo metal-mecânico, em função de peculiares características: altamente energívora (por trabalhar com soldagem de peças de aço); altamente poluidora (por produzir dejetos altamente tóxicos como resultado dessa montagem e tratamentos de pintura); altamente impactante na paisagem (por afetar todo entorno em que se localiza em função dos seus prédios e equipamentos, assim como pelas embarcações que circulam).
O insumo principal de um estaleiro é o aço, na forma de chapas padronizadas e outros gabaritos, que, atendem aos requisitos exigidos pelas embarcações em linha de produção em escala. Esse é o primeiro aspecto que chama atenção quanto à localização do estaleiro em Biguaçu, pois todos os principais insumos teriam que ser importados de longe, vindos de siderúrgicas do RJ e ES, por via marítima. Portanto, um custo extra para a produção de um estaleiro de grande porte como o que a OSX planejava instalar. Outro aspecto que chama atenção, é que a linha de produtos básica do estaleiro seria a montagem de plataformas em cima de embarcações pré-montadas em outro(s) estaleiro(s), razão pela qual haveria um fluxo dobrado de embarcações em direção ao estaleiro – vem a embarcação “despida” e volta “vestida” como plataforma petrolífera. Para permitir essa intrincada operação, imperioso seria haver uma dragagem de um canal na baía norte para propiciar acesso ao estaleiro. Embora tecnicamente possível, uma verdadeira tragédia do ponto de vista ecológico sobre o sistema de vida marítimo e da orla.

“D EFEITOS”  COLATERAIS
A conclusão é que o “arranjo” para viabilizar o empreendimento acabou se mostrando tão complicado, custoso e impactante, que influenciou na decisão da empresa em levá-lo a outra locação na qual esses fatores teriam menor peso para serem solucionadas. E essa alternativa locacional, sem dúvida, estava colocada, entre outras possibilidades, na costa do RJ, já referida acima. A decisão da empresa, nesse sentido, foi calculista, balizada em cima dos fatores de riscos e custos envolvidos na empreitada.
Entre os complicadores na locação em Biguaçu estava o fornecimento de energia, fator condicionante para um empreendimento desse porte, o que implicaria num redesenho da rede alimentadora para toda a região metropolitana, sob pena de sofrer contínuos apagões. Essa adequação deveria ser bancada pelas concessionárias de geração e distribuição locais. Da mesma, forma, as redes de água potável e coleta de esgotos sanitários teriam que sofrer substanciais melhorias, pois hoje já não suportam a demanda naquela região. Escolas, creches, postos de saúde e polícia, tudo somado, é um bolão de recursos públicos drenados para uma prioridade não escolhida pelo povo, mas imposta unilateralmente por uma decisão empresarial alienígena que contava com seus aliados locais em todos os governos da região para conseguir viabilizá-la.
No que toca a possível, e certa, ameaça à fauna e flora marítima, outro complicador: o habitat dos golfinhos que habitam a baía norte e imediações, fator que implicou em enorme esforço por parte da empresa em estudar sua população e seus hábitos, o que resultou numa curiosa opção por realizar as obras de dragagem do canal de acesso ao estaleiro em época do ano na qual os golfinhos supostamente estariam em menor quantidade na região, argumento largamente propagado entre as diversas medidas mitigadoras nas obras de implantação e posterior operação do estaleiro. Ao final, os golfinhos ainda passariam a viver com melhor qualidade de vida do que nos tempos atuais, dadas todas as generosas providências que seriam tomadas para resguardá-los de eventuais “defeitos colaterais” oriundos dos impactos ambientais gerados pelo empreendimento.

O DISCURSO DO PROGRESSO E DO EMPREGO
Os argumentos mais ouvidos à época eram os mesmos chavões que escutamos atualmente vindos daqueles que procuram justificar Belo Monte, as centrais nucleares, novas montadoras de automóveis, quaisquer outros empreendimentos que tragam “progresso” material para nossa sociedade. São argumentos falaciosos, evidentemente, embora absorvidos por uma população ignorante, despolitizada e suscetível a todo tipo de demagogia política infantilizante de costume. Todos temperados por argumentos “técnicos” dos mais diversos perfis, além de condimentados com as precauções e advertências de costume quanto à sua segurança, quanto à eficiência, quanto à inexistência de riscos sociais e ambientais. Em suma, “problemas inexistentes”.
Os apelos nessa linha surtiram maiores efeitos em Biguaçu e nos municípios limítrofes, pois possíveis receptores dos supostos benefícios econômicos que o estaleiro traria para suas populações. É interessante observar que no contexto dos supostos benefícios, a migração para a região resultante da atração exercida pelo estaleiro e suas inevitáveis conseqüências negativas na cidade de Biguaçu, sempre eram omitidas pelas autoridades e prepostos da empresa, quando não transformada em pura vantagem para a cidade. Flagrante prejuízo que, ao trocar de sinal, vira “vantagem”, no caldo do progresso banalizado conceitualmente.
Por parte da empresa, consciente das dificuldades quanto à qualidade e disponibilidade de mão de obra qualificada para tocar o estaleiro, projetou uma série de ações para dar conta da qualificação profissional na região, pois, sabidamente, aqui não há tradição de trabalho em estaleiros navais de porte. Assim, centenas de trabalhadores teriam que ser trazidos de outras regiões do país, incluindo aí o norte do Estado, Itajaí e São Francisco do Sul, em menor medida, até que os “locais” estivessem aptos às diversas funções técnicas, operacionais e laborativas para a construção dessas grandes plataformas. Isso não é trabalho para “amadores”, mas sim para profissionais com boa formação educacional e treinamento específico no ramo metal-mecânico.
Já em Florianópolis, cuja população se concentra em maior quantidade na ilha, pouco usufruiria os alegados benefícios, mas pelo contrário, seria a cidade mais impactada pelos “defeitos” colaterais que o empreendimento produziria: agressão à paisagem; assoreamento marítimo em função da dragagem do canal na baía norte; eventuais poluições no mar ameaçando as praias do norte da ilha; especulação imobiliária gerada pelo afluxo dos quadros técnicos e gerenciais para tocar o empreendimento e funcionamento do estaleiro depois de montado, entre outros fatores. Daí se compreende porque houve maior resistência popular ao estaleiro em Florianópolis, ao contrário do que ocorreu em Biguaçu e outras cidades da região continental.

MOTIVAÇÕES DIVERSAS NA OPOSIÇÃO AO ESTALEIRO
Se por um lado, muitos moradores no norte da ilha, especialmente na orla interior e na face norte, viam com maior ênfase a ameaça do ponto de vista paisagístico e poluidor do empreendimento, outros moradores da cidade colocavam maior ênfase nas implicações ecológicas de âmbito metropolitano, além de impactos sobre a fauna e biota marítimas que seriam afetadas. Um outro fator ainda moveu um bom número de pessoas que, a par de todos os argumentos colocados anteriormente, era o da relação estabelecida entre os produtos resultantes do estaleiro e o cenário de produção energética no país, no qual as plataformas de petróleo alimentariam uma fonte de energia ecologicamente condenável, na contramarcha do que o mundo atual exigiria – uma forte e acelerada guinada para diminuir a dependência do petróleo, pelos diversos fatores sobejamente conhecidos em dias de inquestionável aquecimento global.
Tudo somado, esse conjunto de motivações, cada qual com seu foco e escala de valores, propiciou um movimento social em repúdio ao estaleiro que obteve repercussão regional e nacional, alimentou a polêmica e gerou um saldo de consciência ambiental maior na cidade e região. Esse fator não foi, porém, o determinante, em nossa avaliação para influenciar na decisão tomada pela empresa em ancorar o estaleiro no RJ. O cálculo custo/benefício, feita a comparação dos arranjos dos empreendimentos entre a locação em Biguaçu e no RJ, pesou decisivamente a favor da opção pelo litoral carioca. Do ponto de vista da lógica empresarial capitalista, totalmente acertada na visão do empreendedor, pois trazendo maiores vantagens econômicas e financeiras, razão de existir da empresa.

CONCLUSÃO
O enfoque ao qual no ativemos ao longo dessa pequena dissertação, é o “olhar ecológico”, olhar este que perpassa todos os fatores envolvidos de forma transversal, e atribui um valor maior aos condicionantes naturais já existentes, assim como os custos ecológicos decorrentes do empreendimento, nem sempre de fácil percepção por parte da população. São os custos relacionados com a produção do produto final, o consumo de energia para tanto, os passivos ambientais resultantes em escala de longo prazo. Esses fatores, via de regra, são escamoteados por parte dos empreendedores, especialmente no que diz respeito aos grandes empreendimentos de toda ordem. Pois vivemos num mundo que exige menor aceleração econômica, menor consumo de bugigangas, menor gasto de energia. De outra parte, um mundo que clama por mais tempo livre, de mais saúde individual e ambiental, de maior qualidade de vida para assegurar um futuro melhor para as futuras gerações, sempre na perspectiva de longo prazo. Por tudo isso, o estaleiro em Biguaçu, ou lá onde quer que ele seja instalado, se coloca como mais um obstáculo em meio ao caminho que almejamos trilhar.
Gert Schinke*, Florianópolis, maio de 2011
*Historiador, ecologista, presidente-executivo do INMMAR – Instituto Para o Desenvolvimento de Mentalidade Marítima. Membro do MOSAL – Movimento Saneamento Alternativo e membro do CDFGF – Centro de Direitos Humanos da Grande Florianópolis

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