terça-feira, 5 de agosto de 2014

ESTUPEFATO, SURPRESO, DESAPONTADO


Como militante estudantil, lá pelos idos dos anos 70, eu já ouvia falar de Dalmo de Abreu Dallari, renomado jurista, defensor das mais nobres causas humanitárias, democráticas, republicanas, e, na minha concepção à época, também socialistas. Entre nós era um ícone da esquerda brasileira, da geração do recém falecido Plínio de Arruda Sampaio. Mas o mundo nos apresenta surpresas e a história inusitados caprichos.

Eu o conheci pessoalmente em uma oportunidade que nos colocaria como parceiros em um grande evento político/cultural, em meados de 1989, quando da realização do Encontro Latino-Americano de Educação Popular, em Passo Fundo, importante pólo regional cravado no Planalto gaúcho. Ele, convidado para palestrar sobre questões relacionadas a direito no campo da educação popular, na esteira de Paulo Freire, pauta obrigatória para todo aquele que se apresentava ‘de esquerda’ à época, e eu convidado para palestrar sobre minha experiência na Primeira Brigada Internacionalista Brasileira para a Colheita de Café na Nicarágua, da qual havia participado em 1986. No evento em Passo Fundo eu deveria focar-me nas questões que eu havia vivenciado no campo da educação popular levada a cabo pelos sandinistas. Na época do evento eu já exercia o cargo de vereador em Porto Alegre, recém eleito que fui sob as bandeiras ecológicas, e a oportunidade mostrou-se ótima para que eu fizesse a ponte entre questões ecológicas, internacionalismo proletário e questões ligadas à produção, tema caro aos sandinistas que viviam sob o cerco econômico e militar dos americanos. A escassez de quase tudo suscitava enorme criatividade no povo nicaragüense e despertava um palpável senso de ‘valor de uso ecológico’ das coisas, o que eu sempre entendi como muito bom na linha do anti-consumismo, princípio caro para todos os ecossocialistas.

Um fato inusitado, porém, me traz sempre a viva lembrança da companhia de Dalmo Dallari, então entre nós simplesmente ‘o Dallari’. A viagem entre Porto Alegre e Passo Fundo foi bancada pela organização do evento e contou com a cessão de ‘uma Brasília com motorista’ por parte da Prefeitura da cidade. Para nosso total desespero, o tal motorista, funcionário da Prefeitura, fazia pela primeira vez na vida uma viagem para fora de Passo Fundo, numa BR movimentada e ainda por cima, entrando noite adentro ao final da viagem. Em determinado trecho sinuoso na serra gaúcha, altamente perigoso, quase trombamos de frente com um enorme caminhão surgido em meio a denso nevoeiro, coisa de filme de terror, momento em que, tanto eu quanto o Dallari quase sofremos um enfarte dentro da ‘nobre Brasília’. E o motorista quase desmaiou. Depois de nos recompormos emocionalmente à beira da estrada, ‘por precaução’ seguimos viagem ao ritmo de 50km/h, proibido que estava de entregar o volante a outra pessoa. Momentos assim a gente jamais esquece e ainda hoje me lembro de parte dos diálogos que tivemos após o episódio e ao longo daquela viagem.

Porém, assim como o Plínio que nos deixou o ‘Plininho’, o Dallari nos deixou o Pedro, renomado advogado e atualmente Presidente da Comissão Nacional da Verdade. Na época, vereador de São Paulo, eleito na mesma eleição na qual também me elegi. Ainda em janeiro de 1989, logo no início dos nossos mandatos, ele me recebeu carinhosamente em São Paulo como anfitrião para um ‘giro por dentro do governo Erundina’, a qual me recebeu em seu gabinete com todas as honras, beijicos e paparicos. Esperanças, delírios, inesquecíveis lembranças... De uma época em que o PT prometia transformar a sociedade brasileira, mudar a forma de fazer política, reformar o Estado, acabar com a miséria, taxar as fortunas e... Para alívio da minha consciência deixei o PT em 1991 ‘de mala e cuia’, atitude da qual jamais me arrependi e da qual muito me orgulho em face ao rumo que o partido tomou a partir de então.

Disso tudo, advém, pois, a razão do meu enorme desapontamento com a posição externada por Dalmo Dallari em seu artigo que leva o título ‘Juridicamente Adequado’, publicado no caderno Aliás, do jornal O Estado de São Paulo, na edição do domingo 26.07.14. Tamanho foi meu choque e desapontamento, que fui conferir se o autor era realmente o personagem com o qual havia vivenciado e ‘epopéia de Passo Fundo’. Em seu artigo, que reproduzo abaixo, Dallari não somente refuta os argumentos de inúmeras manifestações de protesto contra a série de prisões arbitrárias e ilegais efetuadas pela repressão no Rio de Janeiro e em São Paulo, como também, isto é o pior, as defende como ‘adequadas’, sob o argumento de ‘contribuir para dar segurança à comunidade e para a garantia do exercício dos direitos fundamentais da cidadania’, o que me parece uma evidente contradição. Perdeu, estou convencido, totalmente o rumo. Então vejamos.

Num ‘estado democrático de direito’, a liberdade de expressão é garantida pela Constituição e se eu, por exemplo, confesso ser um socialista, trata-se de um direito inalienável que tenho, assim como praticar qualquer credo religioso ou idiossincrasia pessoal, desde que não promova morte, racismo ou outros tipos de discriminações a terceiros, o que não se enquadra em nenhum dos casos das pessoas que foram presas. Ora, a polícia prendeu as pessoas antes de praticar atos, inferindo que elas certamente os praticariam. Assim, inaugurou-se ‘a era dos ‘videntes’ na repressão político/policial, uma novidade só imaginável nos dias atuais no Brasil, onde o ‘jeitinho’ avançou sobre a esfera jurídica, da segurança pública e impregna, de resto, todo aparato do Estado.

Inverte-se a lógica do crime: a ele é imputada uma pena antes mesmo de ser cometido, lógica única no mundo, de singular criatividade, mas que de ingênua nada tem. Trata-se de um recurso/discurso jurídico ‘conceitualmente calibrado’ para avançar sobre direitos civis conquistados duramente depois da ditadura cívico/militar e que, pouco a pouco, e de mansinho, corrói essas conquistas. Este processo em curso eu avalio em um texto que intitulei ‘Pouco a pouco, e de mansinho, a ditadura se insinua’. O ‘recado’ é bem simples: intimidar as pessoas para que não façam protestos de rua. E isso se dá em um momento em que milhares saem às ruas exigindo casa própria, terra para arar, mobilidade decente, dentre outras coisas. Acuada fica a elite nacional. E internacional. Em ‘patropi’ quem conduz magistralmente a orquestra das elites acuadas é o PT.

Para mim, é profunda a tristeza em verificar que, ao contrário do companheiro Plínio de Arruda Sampaio, sempre coerente e fiel aos princípios socialistas e libertários até a sua morte na velhice (à sua moda e estilo, é claro), Dalmo de Abreu Dallari comete um ‘crime de lesa-justiça’ e absoluta incoerência política, que colide com sua história de luta em defesa da cidadania e dos direitos humanos. Se me convidassem hoje para viajar com ele novamente para Passo Fundo, não aceitaria de jeito algum. Como disse lá no início, a história tem seus caprichos e nos reserva cada surpresa... Tristezas e decepções também.

Gert Schinke, em Floripa-Gotham-City, agosto de 2014

Juridicamente adequado

DALMO DE ABREU DALLARI - O ESTADO DE S. PAULO, 26 de Julho de 2014

Violência nas manifestações justifica a decretação de prisões preventivas que garantam o próprio exercício da cidadania

Direito de defesa. Na quinta, um habeas corpus liberou a ativista Sininho


Prisões preventivas de ativistas decretadas por um juiz de uma vara criminal do Rio de Janeiro despertaram reações indignadas, com acusações ao magistrado de agir arbitrariamente, ofendendo o direito de livre manifestação que é assegurado na Constituição. Entre as reações houve a publicação de um manifesto assinado por vários deputados, afirmando que “foram prisões cautelares destinadas a reprimir delitos imaginários forjados pelos aparatos da repressão governamental”. E ressaltam que essa decisão do magistrado agrediu o Estado democrático de direito, ofendendo o direito à liberdade individual. Em outro documento de protesto foi dito que “a prisão dos ativistas foi uma grave violação dos direitos e liberdades democráticas”, concluindo que “os direitos de reunião e livre manifestação são conquistas legítimas do povo brasileiro”, motivo pelo qual a prisão dos ativistas deve ser repelida por todos os que defendem a democracia e a liberdade de manifestação.

Na justificativa de sua decisão, o magistrado em questão afirmou haver sérios indícios de estar sendo planejada a realização de atos de extrema violência para os próximos dias, a fim de aproveitar a visibilidade criada em decorrência da cobertura dos eventos da Copa do Mundo de futebol, “sendo necessária a atuação policial para impedir a consumação desse objetivo e também para identificar os demais integrantes da associação”. A Ordem dos Advogados do Brasil, seção do Rio de Janeiro, também se manifestou contra a decisão judicial determinando a prisão preventiva dos ativistas, dizendo que foi “fundada em previsões” ou baseada em suposições, sem nenhum suporte fático.

E houve o recurso a uma tentativa de suscitar um escândalo internacional, com a pretensão de uma ativista, que tinha prisão preventiva decretada pelo juiz criminal, de obter asilo no Uruguai, indo ao consulado desse país no Rio de Janeiro e alegando estar ameaçada de prisão na condição de presa política. Como era mais do que óbvio, o asilo foi negado, por absoluta falta de justificativa, ficando desmascarada a ousada e descabida tentativa. Fundamentando a negativa, a autoridade uruguaia assinalou que o Brasil é um Estado democrático, onde as instituições jurídicas funcionam plenamente e qualquer pessoa que se considere prejudicada em seus direitos poderá pedir e obter proteção judicial. 

Quanto a esses fatos e à decretação de prisão preventiva pelo juiz criminal do Rio de Janeiro, é oportuno lembrar que nos últimos tempos se desencadeou no Brasil uma onda de ativismo, sob os mais diferentes pretextos. A sucessão de manifestações que, pacíficas no início, descambaram para extremos de violência, com a interrupção do tráfego em vias de grande circulação, a danificação de bens públicos e privados e outras ações ofensivas a direitos fundamentais da cidadania, tudo isso justifica e mesmo recomenda a adoção de medidas preventivas em defesa dos direitos dos cidadãos e de toda a sociedade.

No caso do Rio de Janeiro, uma decisão de eminente integrante do tribunal de Justiça daquele Estado, em processo de habeas corpus, acaba de determinar a soltura de grande número dos presos, para que exerçam na plenitude seu direito de defesa. Mas eles continuarão sendo réus no processo criminal e na decisão de soltura foi estabelecida uma série de restrições, visando, justamente, a assegurar o prosseguimento da apuração de responsabilidades e, quando for o caso, à punição dos que tiverem praticado algum ato definido em lei como crime. Esse é o caminho juridicamente adequado que atende aos direitos da cidadania: a utilização da via judicial para apuração dos fatos e, caracterizando-se a prática de crime, a identificação dos responsáveis, para sua punição legal, assegurando-se aos acusados a plenitude do direito de defesa.

Certamente, a certeza da possibilidade de responsabilização jurídica e da conseqüente imposição de penalidades deverá influir para a contenção dos excessos dos ativistas e contribuirá para dar segurança à comunidade e para a garantia do exercício dos direitos fundamentais da cidadania. O Brasil é um Estado democrático de direito e tem uma Constituição com plena vigência, incluindo um Poder Judiciário independente para dar efetividade à proteção e garantia dos direitos. 

*Dalmo de Abreu Dallari é jurista e professor emérito da Faculdade de Direito da USP



Exército brasileiro cria órgão para monitorar manifestações
TÂNIA MONTEIRO - O ESTADO DE S. PAULO, 31 Julho 2014

Nova organização deverá captar informações de movimentos sociais; segundo oficiais, não haverá infiltração de agentes militares
Qualquer tipo de movimento social, de black blocs a trabalhadores sem-teto, poderá ser objeto de acompanhamento pelo Exército

BRASÍLIA - Cada vez mais acionado para apoiar ações de segurança pública, o Exército criou um órgão para captar informações e monitorar movimentos sociais com potencial para prejudicar o deslocamento e atuação de tropas federais convocadas para conter distúrbios e que atuam na vigilância de áreas pacificadas. A nova 4.ª subchefia do Comando de Operações Terrestres (COTER) receberá dados de todos os órgãos que integram o Sistema de Inteligência do País (Sisbin). Todo o trabalho, de acordo com o Exército, é preventivo e permite que a Força chegue ao local para atuar, munida de dados que permitam ter completo “levantamento de consciência situacional”. Nos bastidores, oficiais dizem que não haverá infiltração de agentes militares nos movimentos. Qualquer tipo de movimento social, de black blocs a trabalhadores sem-teto, pode ser objeto de acompanhamento pelo Exército, caso seja enquadrado entre os segmentos que podem prejudicar a execução de uma missão de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

Os métodos de atuação de vários desses movimentos usam táticas similares a guerrilhas urbanas e rurais e há suspeitas de que alguns deles tenham ligação com organizações criminosas das grandes capitais. A subchefia do Comando de Operações Terrestres será abastecida pelos diversos órgãos de inteligência, como o Centro de Inteligência do Exército (CIE), a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), a Polícia Federal, além dos órgãos de informações dos Estados, entre outros. Até o final do ano passado, este trabalho era realizado por um órgão de assessoramento ligado diretamente ao Comandante do Exército. Com as seguidas e crescentes convocações das Forças Armadas para atuar em áreas urbanas em todo o País, o Exército resolveu criar este órgão que, além de juntar e destacar as informações de inteligência de interesse da operação em curso, reúne dados de guerra eletrônica, defesa cibernética, comunicação social e operações psicológicas. Hoje, as Forças Armadas estão patrulhando o Complexo da Maré, no Rio, a pedido do governo do Estado. Havia possibilidade de os militares do Exército serem empregados também para conter distúrbios que poderiam ocorrer durante a final da Copa, como estava sendo previsto, mas a operação foi abortada graças ao trabalho de inteligência e prisão preventiva dos integrantes dos movimentos. 


Prevenção. Para as Forças Armadas, segundo informações obtidas pelo Estado, não foi surpresa o grande número de manifestações na Copa das Confederações, no ano passado. O que os militares não tinham dimensão era do tamanho do movimento e o quão violento seria. O Exército defende a necessidade de se prevenir com informações sobre os movimentos para que não sejam pegos desprevenidos. Um dos objetivos é evitar que, caso a Força seja acionada, possa atuar proporcionalmente ao que encontrará, para evitar qualquer tipo de dano colateral contra sua própria gente. Por exemplo, em caso de ação para garantir a lei e a ordem, de um determinado tipo de movimento, o Exército precisa conhecer o seu líder, para isolá-lo, e precisa conhecer o material que está sendo usado com as táticas de atuação.

Um comentário:

  1. As pessoas não envelhecem, elas escolhem envelhecer, e esse é o caso desse Dalmo.

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